terça-feira, 19 de novembro de 2013

Eu Não Existo Sem Você - Tom Jobim

Eu Não Existo Sem       

Você


Tom Jobim

Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos me encaminham pra você
Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você

A Imitação da Liberdade - por Rodrigo Petronio

Um escritor inglês chamado James Miller (William Shimmell) lança um livro em Nápoles. Na plateia, Elle (Juliette Binoche), dona de uma galeria, que vive há anos na Itália, assiste à sua conferência. O título da obra é exatamente o nome do filme: "Cópia Fiel". Qual é a tese do personagem-escritor? A originalidade não existe. É preciso ir além da superficial intencionalidade do artista. Se reconstruirmos as intersecções, intertextualidades e motivações envolvidas na criação de uma obra de arte, descobriremos que o original se perdeu para sempre.

Em termos evolucionários e antropológicos, qual é a originalidade de microvariações do código genético ao longo de milhões de anos? Cada fisionomia humana seria um breve lampejo diferencial na textura monótona do universo. Toda obra seria uma cópia mais ou menos fiel de obras anteriores. Por isso mesmo, toda cópia tem uma beleza intangível. Todo simulacro traz em si uma potência. Uma verdade.

Mas se no plano da arte isso é possível, como estender esse lema à nossa vida? Existiria uma vida sem autoria? E ela seria desejável? Essas questões vão surgindo à medida que Elle e Miller se deslocam para um vilarejo no interior, em Lucignano, onde existe uma Gioconda. É apenas a cópia de um afresco feita por um falsificador napolitano. Tamanha é sua perfeição que o museu a exibe como se fosse original. Mais: os espectadores acreditam estar diante de um Leonardo.

O espelhamento entre cópia e original não termina aqui. A certa altura, a dona de um café pensa que Elle e Miller são marido e mulher. Ambos assumem a designação desse terceiro que os nomeia. Um jogo se instala entre os dois. Uma ficção da ficção se desdobra aos olhos do espectador. Nessa encenação, o suposto casal compartilha fragmentos de lembranças para testar os limites da representação. Sentimos uma mudança sutil. Aquele talvez não seja um encontro, mas um reencontro.
O diálogo passa a dar vestígios de um possível reconhecimento. Começam a ficcionalizar ou relembrar um passado a dois. Enredamo-nos em um jogo de ilusionismo. Editam falas do passado? Improvisam como dois atores que se apreendessem a si mesmos como atores? Eis-nos imersos na forma pura da indecidibilidade, como diria Derrida.

Nessa obra-prima, o diretor iraniano Abbas Kiarostami propõe uma contundente reflexão sobre o próprio processo criativo e o sentido da arte. E o faz ao revelar os cruzamentos infinitos entre arte e vida. Ou seja: ao ser fiel a uma das mais antigas e menos originais metáforas para a atividade criadora. Nesse sentido, para além da dialética entre cópia e original, o filme de Kiarostami sugere algo mais complexo. Algo mais visceral.

Define a própria condição humana como um fluxo tensionado entre a autoria e a desidentificação. Um pêndulo entre originalidade e renúncia criativa a toda fixidez. Somos, a cada instante tramado na película tangível do tempo, a soma do que fomos, do que poderíamos ter sido, do que deixamos de ser e do que viemos a nos tornar. Além disso, somos também tudo o que ainda poderemos vir a ser. Deixar de ser. Transformarmo-nos.

Captar esse fluxo feito de silêncio e vertigem não é um patrimônio da arte - essa parece ser a mensagem de Kiarostami. Não há distância alguma entre o fingido e o vivido porque a ficção é a soma de todas as máscaras que paradoxalmente nos aproximam mais do que somos. Enredam-nos no âmago da vida ao nos distanciar daquilo que supúnhamos ser. Oferecem-nos o enigma de sermos capazes de decifrar o que se esconde nas camadas virtuais do espelho. Apenas assim é possível realizar o imperativo de Nietzsche: transformar-se no que se é. Tornar-se algo que provavelmente sequer havíamos intuído existir sob nossa pele.

Não é por outro motivo que a liberdade é uma das questões centrais do "Homo sapiens" em sua jornada. E é por causa da dificuldade de separar o vivido, o real e o imaginado que em geral esbarramos em uma visão superficial da liberdade. Acreditamos que ser livre é poder ser o que somos. Engano. A grande liberdade não consiste em sermos o que ilusoriamente imaginamos ser. Consiste em podermos não ser aquilo que não somos.

A grande liberdade não é uma grande afirmação. É uma derradeira renúncia. Não é uma afirmação do exercício de nossos limites. É sim a criação de um campo de possibilidades ilimitado em direção ao que podemos vir a ser. A liberdade não é a segurança do exercício de si. É o elogio da metamorfose e da transformação dos eus virtuais que se ocultam potencialmente em nós - e que desconhecemos. Modo puro da metamorfose.

Uma visão voluntarista desse ato pode nos enredar em camadas ainda mais profundas de ilusão. Por isso a liberdade é tão difícil. Mais importante do que ser livre para escolher é saber quem em nós escolhe quando escolhemos. Por que este ou isto que em nós escolhe decidiu escolher o que enfim acreditamos ter escolhido por livre vontade? Toda a autodeterminação humana é uma apreensão da nossa finitude. Um reflexo de nossa precariedade. Um hino à contingência.

E isso porque, ao fim do caminho, muitas vezes nem sequer supomos quem iluminou o caminho por onde decidimos caminhar. Seguir os instintos ou a moral é obedecer mais aos nossos avós do que a nós mesmos. Muitas vezes nosso eu não é nada mais do que um fantasma. Parido pelo medo. Projetado em um labirinto de espelhos. Sermos fiéis a nós mesmos pode ser o mais triste dos enganos.
Ao definirmos o que somos, quem garante que não estamos sendo a cópia fiel de nossos ancestrais ocultos em alguma caverna interior? Não por acaso, como tragicamente intuiu Nietzsche, é possível nos darmos conta apenas no leito de morte que toda nossa vida foi um equívoco. Essa luta constante da autorrealização é o esteio mesmo da vida. Inescapável.

Outro dia, vasculhando gavetas antigas, deparei-me com um poema. Ao lê-lo, a surpresa. Não pelo seu teor. Nem pela perícia ou a inépcia dos versos. Tudo isso é secundário. O susto se deu por um fato muito mais prosaico: o poema era meu. O continuum de identificação e desidentificação é a essência não apenas de nossa apreensão temporal do eu. É também o enigma de toda arte.

Toda obra de arte é uma maneira de conferir sentido a instantes recolhidos do tempo. Redimi-los do caos indiferenciado. Ampará-los em alguma dimensão transpessoal na qual consigamos sentir as vidas alheias como se fossem nossa vida. Em outras palavras: onde possamos ser fiéis a nós mesmos por meio de outras vozes. A oscilação temporal entre continuidade e descontinuidade simultaneamente dilui e reinstaura o eu. Só assim podemos falar em primeira pessoa.

Não é por outro motivo que a mãe de todas as artes é a Memória, a deusa Mnemosine. Reter os fios esparsos da vida e por meio deles preservar a integridade parcial do que fomos um dia. Para além de todas as artes, essa parece ser a grande Arte. A matriz de onde brotam todas as representações mentais e afetivas de que somos capazes. Se o imaginário amplia as fronteiras do real sem as dissipar, só o faz porque as linhas invisíveis da memória conseguem dotar de unidade o que fomos e o que seremos. Traz as imagens do sonho para a consciência até dissipar os limiares entre o possível e o realizável.

Nos primeiros volumes de sua obra monumental, Proust insere a sonata para piano tocada na casa dos Verdurin. Ela se transforma no tema do amor de Swan por Odette de Crécy. Deleuze, em páginas impecáveis, percebeu muito bem que o tema musical era um ritornelo. Ou seja: uma linha musical que se repete. Sim. Mas que se repete articulando de modo diferencial a série harmônica. Em outras palavras, não é a repetição de uma mesma unidade. É a repetição de unidades que só são identificadas como unidades porque se repetem de modo diferente. A diferenciação confere identidade àquilo que se diferencia de si mesmo justamente ao se repetir.

No plano romanesco, esse recurso formal materializa como o Swan que havia se apaixonado por Odette não é o mesmo Swan que depois medita sobre o fim desse mesmo amor. No terceiro volume, vemo-lo até incrédulo por não conseguir reconhecê-la no retrato da antiga amada feito pelo pintor Elstir. No plano da vida, esse ensinamento de Proust demonstra que o desenvolvimento, o ápice e o declínio do amor de Swan não são nada mais do que a possibilidade de estarmos condenados a sermos diferentes de nós mesmos ao amar uma mesma pessoa. E também de amarmos igualmente uma mesma pessoa cujo rosto nos escapa, multiplicado em prismas no devir temporal, ainda que continue sendo formalmente o mesmo.

Por vias diferentes, talvez Proust e Kiarostami estejam encenando um dos maiores enigmas da vida. Se toda a vida existe e apenas existe como um fenômeno temporal. E se o tempo é a substância mesma de que somos feitos, como bem definiu Jorge Luis Borges. Então a vida pode ser entendida como um infinito gesto de diferenciação. Em outras palavras, como uma constante desidentificação daquilo que supomos ser. Nesse sentido, sermos fiéis a nós mesmos pode ser o caminho mais seguro de simplesmente copiarmos algo que desconhecemos. Uma das formas mais sublimes de alienação.
Parafraseando o crítico Harold Bloom, a angústia não nasce do medo da influência. Ela surge sim da falsa suposição da originalidade. Sermos originais pode ser a mais anódina de todas as mentiras. E reconhecermos a replicação infinita das vozes distantes que nos constituem pode ser o primeiro passo para podermos ouvir os acordes diferenciais de uma música personalíssima. Eles são as frases soltas que se unificam e se dispersam, dia a dia, na eterna conquista de um rosto amado. Apenas assim podemos responder pelo que somos. Apenas assim transformarmo-nos no que somos será enfim o último gesto de nossa liberdade.

Fonte: Valor Econômico, edição de 17/11/2013


quinta-feira, 23 de maio de 2013

Carta aos jovens - Pavlov


   O que desejaria eu aos jovens de minha Pátria , consagrados à ciência?
Antes de tudo - constância. Nunca posso falar sem emoção sobre essa importante condição para o trabalho científico. Constância, constância e constância! Desde o início de seus trabalhos, habituem-se a uma rigorosa constância na acumulação do conhecimento. 

Aprendam o ABC da Ciência antes de tentar galgar seu cume. Nunca acreditem no que se segue sem assimilar o que vem antes. Nunca tente dissimular sua falta de conhecimento, ainda com suposições e hipóteses audaciosas. Como se alegra nossa vista com o jogo de cores dessa bolha de sabão - no entanto ela, inevitavelmente, arrebenta e nada fica, além da confusão.
Acostume-se à discrição e à paciência. Aprendam o trabalho árduo da ciência. Estudem, comparem, acumulem fatos.
Ao contrário das asas perfeitas dos pássaros, a Ciência nunca conseguirá alçar vôo, nem se sustentar no espaço. Fatos - esta é a atmosfera do cientista. Sem eles, nunca poderemos voar. Sem eles, nossa teoria não passa de um esforço vazio.
Porém, estudem, experimentem, observem, esforcem-se para não abandonar os fatos à superfície. Não se tranformem em arquivistas de fatos. Tentem penetrar no ministério de sua origem e, com perseverança, procurem as leis que os governam.

Em segundo lugar - sejam modestos. Nunca pensem que sabem tudo. E não se tenham em alta conta; possam ter sempre a coragem de dizer: sou ignorante. Não deixe que o orgulho os domine. Por causa dele, poderão obstinar-se, quando for necessário concordar; por causa dele, renunciarão ao conselho saudável e ao auxílio amigo; por causa dele, perderão a medida da objetividade.

No grupo que me foi dado dirigir, todos formavam uma mesma atmosfera. Estávamos todos atrelados a uma única tarefa e cada um agia segundo sua capacidade e possibilidades. Dificilmente era possível distingüir você próprio do resto do grupo. Mas dessa comunidade tirávamos proveito.

Em terceiro lugar - a paixão. Lembre-se de que a Ciência exige que as pessoas se dediquem a ela durante a vida inteira. E se tivessem duas vidas, ainda assim não seria suficiente. A Ciência demanda dos indivíduos grande tensão e forte paixão.
Sejam apaixonados por sua ciência e por suas pesquisas.
Nossa Pátria abre um vasto horizonte para os cientistas e é preciso reconher - a ciência generosamente nos introduz na vida de nosso país. Prossigam com o máximo de generosidade!
O que dizer sobre a situação de nossos jovens cientistas? Eis que aqui tudo é claro. A vocês muito foi dado, mas de vocês muito se exige. E para os jovens, assim como para nós, a questão de honra é ser digno de uma esperança maior, aquela que é depositada na ciência de nossa Pátria.

Referência:
CASTRO, Cláudio M. A Prática da Pesquisa. McGraw-Hill, 1977 (FCE: 001.8 / C 355 p)

sábado, 6 de abril de 2013

Se Os Tubarões Fossem Homens - Bertold Brecht


Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais.
Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias, cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim que não morressem antes do tempo.
Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.
Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões.
Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos.
Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos.
Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência.
Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista e denunciaria imediatamente aos tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.
Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre sí a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros.
As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que entre eles os peixinhos de outros tubarões existem gigantescas diferenças, eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro.
Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos
Da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.
Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, havia belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nos quais se poderia brincar magnificamente.
Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões.
A música seria tão bela, tão bela que os peixinhos sob seus acordes, a orquestra na frente entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos .
Também haveria uma religião ali.
Se os tubarões fossem homens, ela ensinaria essa religião e só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida.
Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros.
Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar e os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiro da construção de caixas e assim por diante.
Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.

http://www.youtube.com/watch?v=fziZE352V20


sábado, 12 de janeiro de 2013

Não - Álvaro de Campos

Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.
Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...
Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

sábado, 5 de janeiro de 2013

o que o dinheiro não compra

            Há quem veja na animosidade de nossa política um excesso de convicção moral: são muitos aqueles que acreditam demais, de maneira demasiada agressiva, nas próprias convicções, querendo impô-las aos outros. Tenho pra mim que se trata de uma leitura equivocada do transe em que nos encontramos. o problema na nossa política não é uma questão de convicções morais de mais, mas de menos. Nossa política é tão exaltada por causa do seu essencial vazio, em conteúdo moral ou espiritual. Ela não é capaz de enfrentar as grandes questões que importam a todos.
[...]
           À sua maneira, o pensamento mercadológico também priva a vida pública de fundo moral. O interesse do mercado decorre em parte do fato de não julgar as preferências a que atende. Ele não quer saber se determinadas maneiras de avaliar os bens são preferíveis a outras ou mais condignas. se alguém estiver disposto a pagar por sexo ou por um rim e um adulto se dispuser a vendê-lo, a única pergunta que o economista faz é: "Quanto?" Os mercados não apontam o polegar para cima ou para baixo. Não discriminam entre preferências louváveis ou condenáveis. Cada parte envolvida num trato decide por si mesma que valor atribuir aos objetos trocados.
[...]
          Um debate sobre o limite moral do mercado nos permitiria decidir, como sociedade, em que circunstâncias os mercados atendem ao bem público e quais aquelas em que eles são intrusos. Também contribuiria para revigorar a política a abrir espaço para ideais concorrentes na arena pública. Pois de que outra maneira poderia ter curso esse tipo de debate?
          Caso você concorde que a compra e a venda de certos bens os corrompem ou degradam, será forçosamente porque acredita que certas maneiras de lhes atribuir valor são mais adequadas do que outras. Não faria sentido falar de corrupção de determinada atividade - a criação de filhos, por exemplo, ou a cidadania - se não acreditarmos que certas maneiras de ser pai ou um cidadão são melhores do que outas.
[...]
          Mas o desafio moral e político que hoje enfrentamos é mais capilarizado e mais prosaico: repensar o papel e o alcance do marcado em nossa práticas sociais, nas relações humanas e na vida cotidiana.

Sandel, Michael J. - O que o dinheiro não compra "os limite morais do mercado"

2ª parte


CARTA AO POVO BRASILEIRO

O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político.
Se em algum momento, ao longo dos anos 90, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. Oito anos depois, o povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas e as esperanças frustradas.
Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras.
O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. Por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral.
O mais importante, no entanto, é que essa percepção aguda do fracasso do atual modelo não está conduzindo ao desânimo, ao negativismo, nem ao protesto destrutivo. Ao contrário: apesar de todo o sofrimento injusto e desnecessário que é obrigada a suportar, a população está esperançosa, acredita nas possibilidades do país, mostra-se disposta a apoiar e a sustentar um projeto nacional alternativo, que faça o Brasil voltar a crescer, a gerar empregos, a reduzir a criminalidade, a resgatar nossa presença soberana e respeitada no mundo.
A sociedade está convencida de que o Brasil continua vulnerável e de que a verdadeira estabilidade precisa ser construída por meio de corajosas e cuidadosas mudanças que os responsáveis pelo atual modelo não querem absolutamente fazer. A nítida preferência popular pelos candidatos de oposição tem esse conteúdo de superação do impasse histórico nacional em que caímos, de correção dos rumos do país.
A crescente adesão à nossa candidatura assume cada vez mais o caráter de um movimento em defesa do Brasil, de nossos direitos e anseios fundamentais enquanto nação independente. Lideranças populares, intelectuais, artistas e religiosos dos mais variados matizes ideológicos declaram espontaneamente seu apoio a um projeto de mudança do Brasil. Prefeitos e parlamentares de partidos não coligados com o PT anunciam seu apoio. Parcelas significativas do empresariado vêm somar-se ao nosso projeto. Trata-se de uma vasta coalizão, em muitos aspectos suprapartidária, que busca abrir novos horizontes para o país.
O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas. Quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. O caminho da reforma tributária, que desonere a produção. Da reforma agrária que assegure a paz no campo. Da redução de nossas carências energéticas e de nosso déficit habitacional. Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista e de programas prioritários contra a fome e a insegurança pública.
O PT e seus parceiros têm plena consciência de que a superação do atual modelo, reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um dia para o outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país.
Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade.
Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país. As recentes turbulências do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação.
À parte manobras puramente especulativas, que sem dúvida existem, o que há é uma forte preocupação do mercado financeiro com o mau desempenho da economia e com sua fragilidade atual, gerando temores relativos à capacidade de o país administrar sua dívida interna e externa. É o enorme endividamento público acumulado no governo Fernando Henrique Cardoso que preocupa os investidores.
Trata-se de uma crise de confiança na situação econômica do país, cuja responsabilidade primeira é do atual governo. Por mais que o governo insista, o nervosismo dos mercados e a especulação dos últimos dias não nascem das eleições.
Nascem, sim, das graves vulnerabilidades estruturais da economia apresentadas pelo governo, de modo totalitário, como o único caminho possível para o Brasil. Na verdade, há diversos países estáveis e competitivos no mundo que adotaram outras alternativas.
Não importa a quem a crise beneficia ou prejudica eleitoralmente, pois ela prejudica o Brasil. O que importa é que ela precisa ser evitada, pois causará sofrimento irreparável para a maioria da população. Para evitá-la, é preciso compreender que a margem de manobra da política econômica no curto prazo é pequena.
O Banco Central acumulou um conjunto de equívocos que trouxeram perdas às aplicações financeiras de inúmeras famílias. Investidores não especulativos, que precisam de horizontes claros, ficaram intranqüilos. E os especuladores saíram à luz do dia, para pescar em águas turvas.
Que segurança o governo tem oferecido à sociedade brasileira? Tentou aproveitar-se da crise para ganhar alguns votos e, mais uma vez, desqualificar as oposições, num momento em que é necessário tranqüilidade e compromisso com o Brasil.
Como todos os brasileiros, quero a verdade completa. Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse. Lembrem-se todos: em 1998, o governo, para não admitir o fracasso do seu populismo cambial, escondeu uma informação decisiva. A de que o real estava artificialmente valorizado e de que o país estava sujeito a um ataque especulativo de proporções inéditas.
Estamos de novo atravessando um cenário semelhante. Substituímos o populismo cambial pela vulnerabilidade da âncora fiscal. O caminho para superar a fragilidade das finanças públicas é aumentar e melhorar a qualidade das exportações e promover uma substituição competitiva de importações no curto prazo.
Aqui ganha toda a sua dimensão de uma política dirigida a valorizar o agronegócio e a agricultura familiar. A reforma tributária, a política alfandegária, os investimentos em infra-estrutura e as fontes de financiamento públicas devem ser canalizadas com absoluta prioridade para gerar divisas.
Nossa política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de promover nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento.
Estamos conscientes da gravidade da crise econômica. Para resolvê-la, o PT está disposto a dialogar com todos os segmentos da sociedade e com o próprio governo, de modo a evitar que a crise se agrave e traga mais aflição ao povo brasileiro.
Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico.
Esse é o melhor caminho para que os contratos sejam honrados e o país recupere a liberdade de sua política econômica orientada para o desenvolvimento sustentável.
Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores.
Quero agora reafirmar esse compromisso histórico com o combate à inflação, mas acompanhado do crescimento, da geração de empregos e da distribuição de renda, construindo um Brasil mais solidário e fraterno, um Brasil de todos.
A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública.
O atual governo estabeleceu um equilíbrio fiscal precário no país, criando dificuldades para a retomada do crescimento. Com a política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia.
Exemplo maior foi o fracasso na construção e aprovação de uma reforma tributária que banisse o caráter regressivo e cumulativo dos impostos, fardo insuportável para o setor produtivo e para a exportação brasileira.
A questão de fundo é que, para nós, o equilíbrio fiscal não é um fim, mas um meio. Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores.
Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.
Mas é preciso insistir: só a volta do crescimento pode levar o país a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro. A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados.
O desenvolvimento de nosso imenso mercado pode revitalizar e impulsionar o conjunto da economia, ampliando de forma decisiva o espaço da pequena e da microempresa, oferecendo ainda bases sólidas par ampliar as exportações. Para esse fim, é fundamentar a criação de uma Secretaria Extraordinária de Comércio Exterior, diretamente vinculada à Presidência da República.
Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social. As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais. Vamos ordenar as contas públicas e mantê-las sob controle. Mas, acima de tudo, vamos fazer um Compromisso pela Produção, pelo emprego e por justiça social.
O que nos move é a certeza de que o Brasil é bem maior que todas as crises. O país não suporta mais conviver com a idéia de uma terceira década perdidas. O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social. É com essa convicção que chamo todos os que querem o bem do Brasil a se unirem em torno de um programa de mudanças corajosas e responsáveis.
Luiz Inácio Lula da SilvaSão Paulo, 22 de junho de 2002